sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

 

Galiza: a Pandemia na Periferia da Galáxia1

O mundo está a ser novamente flagelado por uma pandemia e as medidas tomadas desta vez, tal como nos tempos da peste e, há pouco mais de cem anos, com a mal chamada “gripe espanhola”, passam incontornavelmente pelo isolamento social. A restrição da mobilidade, a quarentena de pessoas em suas próprias casas, o fecho de escolas, a proibição de feiras, a construção de hospitais de campanha perante o transbordamento do sistema sanitário, etc. voltam a ter lugar em 2020.

Esta reedição de medidas antigas é feita com o pano de fundo do “politicamente correto”. Seria impensável nesta Europa moderna que os seus Estados-Membros, tal como se tinha feito no século XVI com a sífilis e exercendo o costume atávico de deitar as culpas no vizinho, multiplicassem desavergonhadamente e ad infinitum a nomenclatura médica de uso mal francês”, “mal italiano”, “mal espanhol”, etc.. A Ciência moderna, ao ter batizado a doença como se fosse uma nave da Agência Espacial Europeia COVID-19―, unificou critérios poupando-nos de expressões xenófobas do tipo “mal da china” ou “corona chinês”. Congratulemo-nos. Qualquer governo assim insultado chamaria imediatamente para consultas o seu embaixador, seria muito embaraçoso… máxime quando é da China que nos chega ajuda humanitária em forma desse material médico de que a Europa carece.

Acordada a Europa para uma realidade esquecida, a de ser a recetora de ajuda humanitária, as suas periferias despertámos também para novas realidades. Após a colisão do Titanic com o icebergue, os olhos postos nos botes salva-vidas a fazermos as contas de cabeça, descobrimos com pasmo que nesta viagem de sonho havia passageiros de primeira e chusma como nós, que valemos menos do que a carga transportada no porão. Ninguém nos tinha avisado, pois não?, quando comprámos o bilhete, de que talvez poderíamos não ter direito a usar esses botes. Contudo, era coisa sabida porque já víamos que nesta Europa o politicamente correto fica-se apenas nas palavras, perdurando nas ações de muitos dos nossos vizinhos a velha mentalidade preconceituosa e excludente. De que outra maneira se justifica a recusa pertinaz de países como a Holanda a que a União Europeia assuma em conjunto as despesas derivadas das ajudas aos seus Estados-Membros? E são estes os nossos amigos? amicus certus in re incerta cernitur―.

Aumentemos o zoom e passemos do macrocosmos da Europa até à Galiza: um microcosmos com características particulares, um pequeno reino de minifúndios na periferia de um reino periférico. A Galiza era representada geograficamente nos manuais escolares de há quarenta anos como aquela excrescência que, do canto superior esquerdo do mapa da Espanha, se debruçava perigosa e irresponsavelmente, como a querer-se desprender, sobre esse abismo infinito que nos mapas modernos ocupa agora o território português. Talvez esta condição geográfica extrema tenha forjado o carácter galego, provocando-nos uma certa inclinação para o suicídio ou, acaso, para a emigração. Podem concordar ou não com esta reflexão mas há uma verdade incontestável: qualquer natural da Galiza que pretenda deixar definitivamente a sua terra só tem estas duas opções. Fiquem sabendo.

Depois da Geografia Humana, a História. Quico Cadaval ator, diretor, adaptador teatral, narrador de contos... tinha dito há alguns lustros durante um monólogo (parafraseio): “a Idade da Pedra chegou até ao ano 3000 a. C., na Galiza até 1936”. A gargalhada geral provocada na plateia encerrava uma verdade amarga que todos nós conhecíamos: o atraso que arrastávamos desde tempos recuados. Apesar dessa desgraça evidenciada, ríamo-nos como idiotas. Pensando bem, é ou não é motivo para cometer suicídio ou, ao menos, para emigrar?

Quando na rádio, na televisão e em toda a parte nos falaram dessa terra prometida que era a União Europeia, aqueles que tínhamos as malas feitas ou a corda já pendurada de uma trave do galpão, prestes a dar o passo definitivo, pensámos duas vezes. Era tudo tão bonito, tudo boas palavras, amizade e fraternidade, beijos, abraços e palmadas nas costas; bons salários, boa vida, Eldorado, conhecer novos países, novos mundos… Era como emigrar mas sem sair de casa. Todos os prós e nenhum dos contras. Porque não? Quem se podia negar?

A COVID-19 trouxe-nos de volta, neste jogo de tabuleiro, para a casa de saída. Na verdade é que sempre estivemos nela: era só o tabuleiro que se movia com os tempos, e nós com ele, no ponto zero, com o mesmo calendário atrasado. Só que não queríamos acordar do sonho. Nem sequer atirávamos os dados, outros o faziam alea iacta est!―. Agora acordamos… para a crua realidade do que nos fizeram aqueles que controlavam o jogo: a canibalização do Estado Social. Em que ponto da travessia naufragou essa Europa dos Povos? Acaso alguma vez existiu? E nós sabíamos, bem que sabíamos… Quem pode negar agora?

Seguimos diariamente, porque não dá para ocultar, o calvário dos trabalhadores sanitários, incapazes de suprir a enorme falha estrutural de uma Sanidade Pública anorética; ninguém pode negar os factos, dispensa estender-se mais no assunto. A Educação Pública também não se safou e às diferenças que sempre existiram entre estudantes, originadas por motivos económicos e agravadas a cada ano que passava, podemos somar agora a “exclusão digital” um mais um igual a dois―.

A Covid passará, voltará, virão de certeza outras doenças… Mas os resultados dessas políticas privatizadoras vão permanecer: nas periferias, nos centros, epicentros e centros nevrálgicos, nos microcosmos e macrocosmos everywhere―. A Globalização aqui sim funcionou, estendendo universalmente e como um cancro o Neoliberalismo. Ele é a autêntica pandemia e veio para reinar, nem que nos tenha de matar a todos, a nós e a todo o Planeta, porque antepõe a ferro e fogo o lucro de uma minoria cobiçosa ao bem comum, à saúde, à dignidade, à sustentabilidade e à própria sobrevivência da humanidade. Quem são agora os suicidas?

Visto o ponto da situação e o que está por vir ainda, só nos resta a corda (é mais rápido)isso ou mudarmos (já descartei as malas vão desculpar―, não há para onde fugir: a Globalização, recordam?). O macrocosmos de uma praia de areias brancas está conformado por grãos minúsculos que, na totalidade ou na sua imensa maioria, são dessa cor; se forem cinzentos a praia será cinzenta. As sociedades são feitas de indivíduos; um indivíduo racista, insolidário, egoísta, corrupto, etc. empurra a sociedade nessa direção; do microcosmos para o macrocosmos. É verdade que as sociedades condicionam mais fortemente os comportamentos individuais mas não é menos certo que comportamentos inicialmente individuais terminaram por modificar as sociedades. A neutralidade, esse “deixar fazer” não é mais uma opção: torna-nos parte do problema, como um peso morto no prato errado da balança. É preciso proatividade.

Devemos refletir sobre a nossa responsabilidade, que alguma havemos de ter mesmo que seja por inação, e redefinir quais deveriam ser as nossas prioridades, assumindo que não só à hora de votar mas também em qualquer uma das nossas escolhas companheiros de viagem, o que dizemos ou calamos, o que compramos ou deixamos de comprar, o que denunciamos ou aceitamos… pode estar precisamente a causa deste estado a que chegámos. Na construção desta Europa talvez tenhamos começado a casa pelo telhado, do macrocosmos para o microcosmos, quando devia ter sido ao contrário pensar globalmente, agir localmente. Recordando as palavras de Gandhi “sê tu a mudança que queres ver no mundo”, outro mundo é possível. Podemos criar os epicentros de uma mudança global ou continuarmos a ser a periferia de uma humanidade falhada.

Kiko Castro Nieto

25 de abril de 2020.

1  Este texto, traduzido para o Espanhol, foi publicado no nº 54 da revista El Clarión da Confederación Intersindical.

https://issuu.com/confederacion_intersindical/docs/clarion_54/s/10491362

Este aqui é o original em Português.

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