domingo, 21 de junho de 2009

Saudades do Macaco

Viva. Tudo bom com vocês? Comigo, assim-assim.

Hoje o doutor Nieto estragou-me o café nesta manhã de domingo. Domingo é sagrado... e o café do pequeno-almoço ainda mais! O doutor, porém, parece estar-se nas tintas com relação aos costumes e tradições que sempre tenho honrado aqui na Toca.

Tento ser compreensivo. Sei que a elegância e as boas maneiras são elementos extrínsecos à natureza deste ser... é defeito do animal, má-criação. Mas isto não justifica que me apareça pela frente, sem mais nem mais, como macaco em loja de louça, a essas horas do dia em que a gente ainda não está de todo acordada, com pedidos despropositados que não vão a parte nenhuma.

A origem de tudo, faço constar, está na informação publicada (em má hora) sobre aquele chimpanzé que mordeu a mão do director do zoológico alemão. Eu sabia que o Sotor é tão doido por entrar neste Blogue como macaco por banana. Já anteriormente tinha vindo, como diria Mia Couto, a "pedinchorar" para eu lhe permitir publicar no Blogue. Eu tinha recusado —cada macaco no seu galho, meu caro—. Nenhum dos dois, pelos vistos, tinha esquecido.
8h 30 da manhã. Estremunhava-me eu ainda à frente do café quando ele entrou na cozinha como aquele que diz “eu só vou fazer um chazinho e pegar umas tâmaras que estou cá com uma fome...”, mas este saca-rabo aqui é macaco velho e logo vi aquele intuito perverso de aproveitar a minha moleza matutina para dar um golpe de mão e apossar-se de uma parcela no Blogue. Não adiantava ele vir com falinhas mansas, não.

Continuo a relação dos factos. O professor, armado em zoólogo-antropólogo-ainda-de-cuecas-porque-é-cedo, sentou-se à minha esquerda e começou a falar com relação àquela “situação no zoológico de Berlim” e “às informações e conhecimentos que o homem moderno poderia obter de si próprio se conseguisse entender o porquê da reacção deste seu parente, com quem partilha, aliás, 98,7% do material genético. Porque, não esqueçamos, chimpanzés, orangotangos e gorilas são perfeitamente humanos, blá-blá-blá".

Eu concordo, sim senhor. Ninguém se ofenda (sei que muitos de vocês ainda não ultrapassaram esse lastro do antropocentrismo). Na Toca tínhamos falado imenso aquando da discussão da Lei dos Grandes Símios em Espanha, sendo eu e o Kiko do mesmo parecer no tocante à humanidade destes primatas. Mas convenhamos: há macacos que são humanos e humanos, como ele, que só têm macacos no sótão. Além disso, um mangusto vivido e lido como o que subscreve sabe diferenciar perfeitamente essas animadas conversas de cachimbo, cafés e madrugadas, destes outros discursos decorados que apenas são conversa fiada. Não liguei, confesso.

Visto o insucesso, ele tentou reconduzir a sua estratégia, argumentando que “tenho umas ideias muito interessantes ao respeito e blá-blá-blá” e que “aquela reacção violenta do primata em cativeiro poderia corresponder-se plenamente à de um homo sapiens em idênticas circunstâncias”, “sociedade dos chimpanzés não menos complexa do que as sociedades humanas, blá-blá-blá”, “diferenças mínimas... macacos evoluídos, cérebro desenvolvido e polegar opositor, blá-blá-blá”.

Concordo novamente: temos visto imensos documentários de chimpanzés e sabemos que são capazes do melhor e do pior ("O homem, é capaz do melhor e do pior, principalmente do pior". Saramago). Todavia, a pretensão de utilizar um caso tão pouco edificante como o assunto do dedo decepado à dentada, a modo de exemplo dessa Humanidade Universal dos Grandes Primatas, não tinha, do meu ponto de vista, pés para andar. Ninguém quer ver chimpanzé nem homem a brutalizar seus semelhantes ou a tirar macacos do nariz (só se fosse alguém ainda mais macaco).

Como o meu café já estava frio e aquilo tinha ido muito além do que a minha paciência estava obrigada a aturar, mandei ao professor ir pentear macacos. Foi nesse preciso momento que vi tudo claro. Já alguma vez pensaram na dificuldade que encerra a simples acção indicada por esta frase feita do português? E o que dizer das outras todas relativas ao macaco, algumas das quais aqui grafadas em itálico?

Aquele significado tão deliciosamente cruel que às vezes têm algumas expressões portuguesas, unido à alopecia do meu interlocutor humano, por extensão macaco (as correspondências devem sempre ser recíprocas), progredia da grande dificuldade (no simples primata) para a pura impossibilidade e surrealismo no caso do Dr. Careca. Sinceramente, o que acham do facto de se passar um pente pela cabeça erma deste macaco evoluído? Acaso não teria sido mais irónico mandar-lhe, simplesmente, ir pentear-se?

E mais. Que porra de evolução era esta? O que tem de melhor este neo-macaco? Qual a utilidade na Natureza de uma tal cabeça desprovida de pilosidades que eriçar para parecer maior e mais ameaçante? O que é isso? Eu digo: o nada, o vazio, a pura exibição de crânio... isso sim, com cérebro desenvolvido e polegar opositor (e para quê? —pergunto-me— não tem cabelo que puxar).

Foi aí, estava a dizer, que eu compreendi. Reparei no Sotor, naquela sua compleição de ombros descaídos, privada do volume e da pujança que a vida arborícola outorga aos macacos. Aquele seu cacarejado bipedismo, longe de supor qualquer vantagem, fazia apenas com que ele oferecesse um alvo maior a insectos e pedras arremessadas. A sua vista, ouvido e faro rudimentares não contrabalançavam as falhas. Quanto a essa “dentição de animal omnívoro que serve para tudo” e que, afinal, não serve para nada: acham que algum animal bravio, mesmo pequeno, se assustaria dessa boca arreganhada mas carente de presas com que ferir?

Senti dó dele. Todo esse raciocínio pseudo-científico não passava de uma demão de verniz que mascarava uma funda frustração e saudade. Era o grito desesperado, na solidão da noite dos tempos, de um macaco vindo a menos. Essa necessidade de humanizar os macacos não era senão a inversão de uma outra, mais real e premente: a de amacacar a sua humanidade falhada. Ligar a sua própria evolução à dos primatas significava poder entroncar-se com um passado glorioso: um passado de uivos nas copas das árvores, de punhos fechados a bater no peito, de patrulhamento do território, de rixas entre machos por causa das fêmeas, de despiolhar colectivo na manada.

Chegou-me ao coração, quase chorei —já disse que me tinha estragado o pequeno-almoço, não foi que disse?—. Esta desumanização humanizou-o aos meus olhos. Eu próprio me convenci: não tarda que este meu macaco involuído possa escrever no Blogue e, tal como partilhamos toca, gostos e conversa, partilhemos também este ponto de encontro em língua portuguesa.

Macacos me mordam se eu não cumprir a palavra.

2 comentários:

Unknown disse...

Parabens, "Doutor Nieto" por criar um espaço tao original em português!

Desde hoje tentarei de seguir regularmente esta toca!

Cumprimentos e até à proxima!

Unknown disse...

Esqueceu que o director do zoológico alemão,pôde ter uma "morte macaca"!!!